Esses dias um amigo me escreveu falando que tinha acabado de gastar mil reais na Zara. Eu ri e falei “Uau, não consigo me lembrar a última vez que comprei algo lá… ou, na verdade, em qualquer lugar?”. Fui rever meu histórico de compras e lá estava: minha última compra na loja de fast fashion datava de 20 de junho de 2023. Estamos em Setembro, então temos aí um ano e dois meses sem comprar roupas novas. E eu sei que eu não comprei nada em nenhum outro lugar depois, porque isso responde a pergunta/espanto do meu amigo: “Nossa, como você consegue???? Me ensina”.
Simples: não tendo dinheiro.
Eu nem pensei sobre isso, eu apenas não comprei nada, e o tempo decorrido não havia passado pela minha cabeça até essa conversa numa manhã qualquer. Ele brincou “Poxa, cadê o blog?”, fazendo referência a ideia genial de outra amiga, a Joanna Moura, que criou o “Um Ano Sem Zara”, em idos de 2011, em que documentou sua saga de não comprar roupas e acessórios durante um ano todo, buscando uma saúde financeira que ela não tinha na época. 1
Ela estava quebrada, com o cartão no vermelho, cheque especial, a coisa toda. Era consumista assumida, afogava às mágoas como também celebrava conquistas com o gesto de comprar uma roupinha nova.
Been there, done that. Muitas e muitas vezes - tanto que eu também tive meu próprio projeto focado em economizar dinheiro, mais de uma década atrás.2
Mas esse um ano sem compras não teve a ver com isso. Não foi uma intervenção porque eu estava gastando demais com roupas - embora, olhando em retrocesso a fatídica última compra da zara, tenha passado pela minha cabeça que, de tudo aquilo, apenas duas coisas realmente valeram a pena.
Eu simplesmente não tinha dinheiro pra ficar comprando roupas e meus problemas ficaram muito maiores do que a minha preocupação com quão atualizado estava meu guarda roupa ou não.
Mas esse não é um texto sobre economia, consumismo ou dicas pra ficar bem com esse fato. Como eu disse, simplesmente aconteceu.
Esse é um texto sobre como eu me dei conta de que, mesmo sem comprar nada novo ao longo desse um ano, esse foi um dos períodos em que eu mais gostei e me diverti e me vi no meu estilo.
Usando apenas (ou tudo!) o que eu já tinha - e percebendo quantas coisas definitivamente podem ir embora e serem felizes em outros armários - eu experimentei e explorei com muito mais afinco, sem imediatamente agir depois de pensar “preciso de algo novo". O que é algo curioso, tendo em vista que esse ano eu comecei a usar o TikTok, e lá tudo é sobre novidade. A nova tendência, o novo momento, a nova peça que todo mundo quer - usa - filma - fotografa e depois enjoa e passa pra seguinte.
E em meio a esse monte de novidades do lado de fora, eu fui me perguntando o que poderia ser novo aqui dentro. Como eu poderia usar essas mesmas coisas que eu já tinha, já conhecia, mas de outros jeitos. Como eu poderia ter a sensação de algo novo sem, de fato, comprar nada? O novo não acontece de um único jeito, ele pode ser criado a partir daquilo que já está ali. Vai depender muito mais da maneira com que a gente vê a coisa em si, e como a gente mistura, incorpora, propõe.
Quando penso sobre compras e sobre como hoje é muito fácil ter qualquer coisa nova no armário (com Shein e Tamu e outras fastfashion baratérrimas), eu imediatamente penso no encurtamento da nossa capacidade de lidar com instatisfações e, portanto, com nossa capacidade de criar.
A criação / criatividade surge, muitas vezes, da necessidade. Do tempo de elaboração. De ter que resolver com o que a gente tem, e não com o que a gente gostaria que tivesse. Da limitação. De pensar ‘o que eu consigo fazer aqui mesmo não tendo todas as condições ideias pra fazê-lo?’.
Quando qualquer ponto de insatisfação emerge e quase que imediatamente a gente pode resolver com alguns poucos cliques, não há muito espaço pra criar nada. Nem mesmo um mísero look.
Outro dia recebi uma dm no meu instagram sobre o top que eu havia usado na minha aula de dança, elogiando e perguntando da onde era – aquele papo comum de dm's de instagram quando você mostra suas roupas. Eu agradeci e respondi que, além de ser o top de um biquíni, era também uma peça meio antiga, devo ter comprado em 2019 ou algo assim. Ela me respondeu "olha! eu também tenho um biquíni com a parte de cima parecida, mas nunca havia pensado em usar assim!”.


Se uma moeda caísse no meu colo cada vez que eu recebo essa exata mensagem – “nunca havia pensado em usar assim/fazer assim” – eu estaria revivendo aquela clássica cena do tio patinhas mergulhando em dinheiro, e não tô nem exagerando.
Parte de mim se sente muito alegre em poder mostrar um jeito outro de usar algo, fazer algo, enfim, mas parte de mim sempre pensa sobre o fato de que cada vez mais estamos menos disponíveis pra olhar as coisas a partir de outras perspectivas. E literalmente não é apenas sobre se vestir.
Se a gente não tá conseguindo olhar pras nossas roupas e coisas e imaginar o que mais aquilo pode ser, de que outra jeito a gente pode se sentir satisfeitas com aquilo que já temos, quem dirá sobre todas as outras coisas exponencialmente mais complexas e importantes da nossa vida? De se ver diante de um problema ou uma limitação e não conseguir enxergar nada além daquilo, daquela impossibilidade, daquela frustração porque a realidade não atendeu as nossas expectativas, e ir adiante, pensar em algo diferente, se propor uma solução que já não tenha sido experimentada antes?






Ok, talvez eu esteja exagerando. Talvez na vida real, fora dos nossos guarda-roupas, a gente se esforce mais pra encontrar satisfação sem imediatamente recorrer a uma solução rápida que cause menos dor. Mas será mesmo? A ilusão de que tudo pode ser mais fácil a partir de um clique inevitavelmente vai nos tirando o ânimo pra lidar com qualquer mínimo atrito. Pensemos em aplicativos de relacionamentos, de entrega de comida e streamings. Está tudo ali, é tão fácil, você mal precisa pensar e pronto, está disponível pra você. Cozinhar? Muito trabalho. Encontrar gente no mundo real? Deus me livre. Ir ao cinema? Caro e desnecessário sair do conforto da minha casa e do meu mundinho.
Eu juro que não comecei esse texto pensando em ir por esse lado, mas no final das contas, nossa capacidade de imaginar e criar é o que nos possibilita viver vidas menos horríveis. Mas pra chegar nisso a gente precisa não ter todos os nossos desejos realizados a todo minuto, por mais banais que eles sejam.
Eu só invento um jeito novo de usar um top porque eu não compro imediatamente um top novo a cada vez que quero me sentir bem com a maneira que me visto.
Eu só posso aprofundar as minhas relações mais íntimas com as pessoas que eu amo se ao surgir uma frustração, ao invés de virar as costas e ir embora, eu passar pelo desconforto de ter uma conversa difícil e ser vulnerável, e atravessar aquilo, e seguir adiante.
Esse encurtamento de perspectiva e a falácia do conforto acima de tudo3 é um troço que parece inofensivo, mas é muito perigoso.
Antes desse um ano sem comprar roupas, eu estava comprando bastante coisa. Não o tempo todo, mas eu tinha uns picos, e aí eu fazia um estrago. Um estrago porque não só eu gastava um dinheiro considerável, como também porque eu não necessariamente fazia boas compras. Era tudo online, eu não conseguia experimentar, parecia lindo na modelo, deve ficar lindo em mim também, ‘adicionar ao carrinho', e quando chegava era um desastre – não tudo, mas boa parte. E pra piorar, eu ficava tão frustrada que eu ignorava aquelas peças tanto tempo que eu perdia o prazo pra devolver ou trocar. Ridículo, honestamente.
Mas eu tinha possibilidade de comprar, tinha o dinheiro, e lá estava eu de novo fazendo uma compra impulsiva pra tamponar alguma coisa que não tava indo bem na minha vida fora do mundinho roupas. Era imediato. O rush, a excitação, me imaginar vestindo aquilo, imaginar a sensação da peça, idealizar a pessoa que eu seria quando aquele pedaço de tecido se tornasse meu. Mais estilosa, com certeza. Mais deseja, talvez. Mas no fundo eu queria me sentir mais feliz, ponto.
Todos passamos por isso. Pode não ser roupa pra você. Pode ser outra coisa. Mas a ideia do consumo como resposta pras insatisfações da vida e, como resultado, encontrar felicidade, é a base do capitalismo.
E essa mesma lógica é facilmente replicada pra todas as áreas. A gente consome bens, a gente consome conteúdo, a gente consome relações.
E não necessariamente estamos tirando prazer disso.
O antídoto são várias coisas. O principal deles sendo muito maior do que uma escolha individual, mas uma revolução na maneira com que a gente vive e que o Estado se organiza. Idealista, sim. Talvez utópico.
Mas um deles, que talvez seja muito mais tangível e ao alcance de nós, seres individuais, é tão simples quanto se propor a lidar com as limitações (da vida) com um pouco mais de perspectiva. Encarar as frustrações com mais flexibilidade. Fazer o trabalho, passar pelo desconforto, lidar com a realidade e não o tempo todo se esquivar dela.
Eu juro que tem alegria e diversão e satisfação quando a gente encara as coisas dessa maneira. Talvez não na mesma quantidade de quando a gente toma o caminho mais rápido, mas com certeza é mais duradouro, mais sólido e preenche muito mais.
A gente também descobre coisas legais pelo caminho, sobre a gente e sobre as coisas que escolhemos dar atenção.
Vira e mexe alguém me pergunta como encontrar o próprio estilo, como passar por coisas difíceis, como lidar com frustração, e acho que algo em comum entre essas coisas está “sentar com a coisa por um tempo e não buscar uma solução rápida". E encontrar, de alguma maneira, algo interessante nesse processo. Olhar com curiosidade, com intenção.
Pode parecer uma coisa pouca – mas o efeito é tipo dominó. E a gente vai ficando melhor nisso a medida que vai fazendo.
Serve pro guarda-roupa, serve pra vida.
Falei de ficar um ano sem comprar roupas e virou por uma crítica a como a gente tá fixada numa vida sem desconfortos.
A princípio eu só queria mostrar meus luquinhos e como eu usei as mesmas peças de jeitos diferentes. Um texto assim mais leve, sabe?
Quem sabe numa próxima – eu ainda quero mostrar como eu explorei meu guarda-roupa como uma Indiana Jones em busca de preciosidades. Isso é, se vocês quiserem ver.
Minha vida deu uma guinada nos últimos meses, contei um pouco mais nesse texto aqui, mas uma das coisas que me trouxe foi a certeza de que eu quero (e preciso! pela minha sanidade!!!) escrever mais. Se você quiser estar aqui comigo, considere assinar a versão paga da newsletter, porque a maioria dos textos vão pra lá.
Com carinho,
Stephanie Noelle
Clube de Leitura
Aproveito para dizer que nosso Clube de Leitura está em vias de começar seu terceiro livro. Quer ler com a gente? Vem aqui pra entender mais.
📚Nosso último livro do ano!
Rosa Montero é uma autora única – gosto de como ela mistura ficção com dados da realidade, como ela monta uma narrativa ao mesmo tempo que te apresenta estudos e notícias e números científicos.
Um fun fact é que eu escrevi uma matéria sobre o blog da Jô em 2011, quando eu era uma pequena estagiária no FFW e ela havia começado o blog há poucos meses. Foi assim que nos conhecemos!
Fiquei chocada com a coincidência. Como pode o seu texto estar tão alinhado com questionamentos que viveram na minha cabeça essa semana?
Comecei ontem a ler o “Se eu parasse de comprar?” Da Joana Moura. (É uma leitura coletiva com um grupo de finanças femininas chamado “As Investidoras”)
Parece mais uma daquelas confirmações de que as vezes um processo que parece individual e solitário pode ser coletivo e a gente nem tá sabendo, cada um com seus dilemas na sua casa.
Nossa Noelle que texto maravilhoso!
Eu também preciso me esforçar para parar de comprar por uma vida…rs
A quantidade de roupas que eu tenho, talvez eu não precise comprar mais mesmo!
Você com seu texto me deu mais força para iniciar. Afinal, não estou sem dinheiro sem motivo… 🥹
Obrigada por essa reflexão!