É bonito de um jeito meio caótico se ver de trás pra frente.
Sabendo tudo o que aconteceu, querendo colar alguns pedacinhos que ficaram pelo caminho, porque agora você aprendeu uma coisa ou outra que poderia muito ajudar ali, naquele determinado ponto.
Não funciona assim, mas algo que eu percebi é que consigo ser muita mais gentil com quem eu fui.
Isso, na verdade, é uma lição da vida – eu sempre fui muito dura comigo mesma, muito exigente, quase nunca me dando a chance de errar sem que aquilo significasse algo absolutamente catastrófico.
Eu tinha que acertar, fazer certo, ser exemplar.
Não dar trabalho nenhum, resolver as coisas sozinha, ser minha própria força.
Desde pequena, desde que eu me lembro, eu fui assim.
Uma criança-adulta, seguida de uma adolescente responsável que virou uma jovem que não se dava o luxo de errar.
Por isso eu, desde pequena, me via fazendo coisas muito sérias. A primeira profissão que eu quis ter foi cientista – era a metade dos anos 90, a AIDS estava no auge, e eu via muito jornal com o meu pai à noite e Fantástico de domingo era praxe. Inventei que queria ser cientista pra achar a cura (!!!), porque eu chorava toda vez que alguma matéria sobre isso aparecia na televisão. Eu não tinha nem oito anos de idade, e pouco tempo depois o pediatra disse pros meus pais que eu estava com depressão. Como prescrição médica fui proibida de ver jornal ou qualquer coisa que me "deixasse nervosa ou triste".
Alguns anos depois meu pai foi tentar a sorte sendo caminhoneiro, e nos mudamos pra Goiânia, onde o irmão da minha mãe morava. Ele também era caminhoneiro.
Lá, eu convivia basicamente com adultos - meus tios, os amigos dos meus tios, e as vizinhas do prédio.
Penso neles com frequência, mas não lembro o nome de nenhuma criança com quem estudei.
Ali, com dez anos recém-completados, eu decidi que queria ser juíza.
Só mudei de ideia alguns anos mais tarde, provavelmente por causa de algum livro. E então escolhi ser diplomata, algo que mantive até quase o vestibular.
Eu nunca quis ser bailarina, atriz, cantora, artista. Eu tinha certeza de que essas coisas só davam certo pra quem tinha dinheiro, pra quem os pais podiam ajudar, oferecer algum suporte, pagar cursos e levar nos testes. Como eu sabia disso? Porque minha mãe tinha esse desejo. Ela queria que eu fosse modelo, pois como toda mãe, ela me achava a criança mais linda do mundo. Ela foi atrás de fazer umas fotos pra mim, numa dessas promoções de shopping, e mesmo assim foi caro. Eu lembro dela se frustrar com como tudo era caro, com como tudo tinha que ser pago, como agências cobravam pra você entrar na lista de agenciados, e como as mães precisavam ser mães-em-tempo-integral nessa dinâmica toda. Na nossa realidade, isso era impossível.
Se com pai e mãe trabalhando fora a gente já mal tinha dinheiro pra pagar as contas, imagina sem isso.
O sonho (dela) acabou de vez quando fui convidada pra ser dama de honra de um casamento, e minha mãe tinha certeza de que com as fotos bonitas daquele dia eu iria conseguir vários trabalhos como modelo infantil.
Engraçado como algumas memórias marcam a gente - e essa está comigo até hoje. Fui à loja experimentar o vestido com as outras daminhas e suas mães. Uma loja dessas bem chique, tudo branco, tudo neoclássico, um cafézinho sendo servido em xicáras minúsculas com a borda dourada. Tudo cheirava a baunilha, e a sala de prova tinha um tapete clarinho e muito macio.
Quando vesti aquele vestido, eu me senti importante. Me senti como aquelas meninas, cujas mães endinheiradas tinham todo o tempo do mundo pra irem pra lá e pra cá ao lado delas, cujas mães estavam acostumadas a tomar cafés em xícaras minúsculas em ambientes como aqueles.
Curioso é que não me lembro direito do vestido. Só lembro de ser azul escuro, de veludo, com manguinhas e anáguas bufantes, e uma meia calça branca. Em Goiânia, no verão mais seco que já vivi, um bando de crianças dentro de bomboms irrespiráveis, mas muito lindas, muito imaculadas.
Tirei o vestido, voltei pra realidade.
Era preciso deixar um cheque caução pra levar o vestido, e o aluguel era quase tão caro quanto nosso próprio aluguel, o da casa em que morávamos. Minha mãe ficou em choque – achava que a noiva pagaria pelo vestido, afinal, eu fora convidada. "Não, senhora, o aluguel do vestido é responsabilidade das mães das damas de honra". Minha mãe é uma taurina brava, e eu senti que ela poderia começar uma discussão com a recepcionista da loja quando uma das outras mães se ofereceu para fazer o cheque caução pra gente - se era esse o problema. Pude ver o constrangimento inundar a face da minha mãe, sua coluna enrijecer e os lábios crisparem. Não era esse o problema - a gente não tinha era dinheiro pra pagar o aluguel do vestido, fosse na hora, fosse depois. Simplesmente não tínhamos, a fada madrinha não iria surgir ali e resolver a nossa questão. Mas minha mãe jamais passaria pela situação de falar que "O problema, Shirlei, não é esse. O problema é que somos pobres, apesar do fato de que de vez em quando a gente anda com pessoas com muito mais dinheiro que nós. O problema é que é um absurdo um vestido que será usado uma única vez por uma criança de nove anos e será devolvido lavado, nas mesmas condições que foi retirado, custar mais de quinhentos reais. O problema é a distribuição de renda, o problema é meu marido trabalhar mais de 15 horas por dia dirigindo um caminhão nas estradas rodoviárias brasileiras e receber um dinheiro mínimo, porque a profissão dele é considerada inferior ao do seu marido, que veste terno e fica sentado numa sala refrigerada todos os dias. Esse é o problema, Shirlei!".
Mas minha mãe não falou isso.
Minha mãe mentiu que estava sem o talão de cheques, ao que a Shirlei reafirmou que poderia fazer por ela, mas minha mãe foi categórica em dizer não, obrigada, vou vir buscar outra hora. Saímos da loja, eu entrei no nosso fusquinha vermelho e ela me disse: "Você não vai ser dama de honra desse casamento, filha. Me desculpa".
Ela ligou o carro, eu comecei a chorar, e fomos embora.

Se eu parasse pra pensar por mais tempo, eu não teria escolhido ser jornalista. Com a internet começando a ganhar mais espaço, era óbvio que as redações entrariam em crise.
Mas na época eu não pensei sobre isso, eu estava animada demais com a possibilidade de ganhar dinheiro pra ler & escrever. Pra descobrir coisas e contar sobre elas. Pra conhecer gente, viajar o mundo, entender sobre temas importantes, sérios, que mudam o curso de um país.
Eu tinha dezessete anos, e estava obcecada por política. Eu lia muito sobre a ditadura militar, assistia Ônibus 174 toda semana – eu tinha um projeto na escola, que inventei com outros colegas, em que passávamos filmes pra alunos de outras escolas públicas e discutíamos sobre ele – e estava sedenta por fazer a diferença, mudar o mundo, e, obviamente, ser importante. Eu era vegetariana, fã de Chico Buarque e tinha acabado de falar pra minha mãe que não acreditava mais na Igreja Católica, e como ato de rebeldia não seria crismada. Eu seria jornalista e escreveria sobre política. Sobre conflitos internacionais. Sobre o impacto das decisões de líderes mundiais no dia a dia das pessoas comuns.
Era esse o objetivo. O sonho.
Faria jornalismo na USP, moraria na capital, teria meu próprio apartamento, trabalharia na Folha de S. Paulo e um dia escreveria um livro sobre minhas peripécias como jornalista tal qual Ricardo Kotscho e Zuza Homem de Mello.
Meus pais, Celso e Beth, não fizeram faculdade. Minha mãe engravidou aos 17 anos, parou de estudar e, portanto, só concluiu o ensino médio quando eu já era adolescente, num curso supletivo noturno. Meu pai, 12º filho de uma família de 13 irmãos, tinha se formado na escola, e aos 21 anos tinha um curso técnico de Elétrica no currículo e nenhuma preguiça pra trabalhar.
Tão logo eu nasci, num domingo de sol em que Fernando Collor de Mello seria eleito, e a bolsa da minha mãe estourava minutos antes dela sair pra votar no Lula, meus pais arregaçaram as mangas pra fazer aquilo funcionar. Uma bebê no colo, nenhuma perspectiva de futuro. Nenhum deles tinha família com condições financeiras de ajudar ninguém, um tio rico, uma parente dona duma fábrica de colchões que precisava de alguém de confiança pra assumir os negócios.
Vim ao mundo e logo fui colocada em creches, depois na escola pública, e arranjei jeitos desde muito cedo de não dar ainda mais trabalho pra eles. Enquanto meus coleguinhas brincavam na rua, eu com onze anos pedi pra ser voluntária da biblioteca da minha escola, onde eu passava as tardes arrumando os livros no tempo que sobrava entre lê-los sentadinha no chão, escondida nos corredores. Quando mudei de escola, fiz a mesma coisa e na seguinte, também.
Só parei com 15, quando entrei na Escola Técnica Estadual Pedro Ferreira Alves, meu maior sonho naquel momento, e dois meses depois fui chamada pra ser estagiária da secretaria dos alunos, algo que aceitei com muita alegria, mesmo sabendo que a partir dali eu chegaria as 7h da manhã e sairia às 22h, abdicando de todo e qualquer tempo livre – minha mãe estava fazendo um curso ténico de Mecânica, e o acordo era esperá-la pra irmos embora juntas.
Foi então que comecei a escrever regularmente. Entre o fim do expediente e a saída da minha mãe, eu ficava fechada na secretaria, com um computador e internet rápida à minha disposição, e junto com baixar clandestinamente episódios de séries e albuns dos meus cantores favoritos, eu tirava tempo pra escrever um diário online numa plataforma que se chamava LiveJournal.
Eu estudava ali, trabalhava ali, sonhava ali.
E o grande sonho era sair dali.
Era construir uma vida totalmente diferente, e, quem sabe, aproveitar mais, tirar mais alegria daquela experiência, que, até então, havia sido boa, mas muito dura e muito difícil também.
Meus pais brigavam todos os dias, e eu era a filha sensata que entrava no meio pra apartar. Desde que eu me lembro foi assim. Minha mãe com medo, meu pai com raiva. Minha mãe com raiva, meu pai bêbado. Eu sonhava com uma vida em que não teria que me preocupar tanto com eles, em que eu pudesse ouvir o silêncio ao invés dos gritos e das portas batendo.
A realidade não abarca os sonhos na mesma medida. Você se adapta, ou passa o resto da vida frustrada com tudo que não foi, mas poderia ter sido.
Eu entrei na USP, mas desde o dia 01 foi ficando claro que as coisas seriam um pouco diferentes do que eu tinha imaginado. Não havia dinheiro nenhum pra me sustentar, e São Paulo era muito, muito mais cara do que Mogi Mirim, que já não era exatamente confortável pra gente.
Morar no alojamento da universidade me salvou – e eles não eram nada parecidos com o que a gente imagina quando assiste séries demais de adolescentes norte-americanos. No entanto, eu tinha um teto, tinha o bandejão, tinha as maiores bibliotecas que já tinha entrado. Mas não tinha nada além disso.
E eu fiz o que sabia fazer.
O que eu sempre fiz: Resolvi sozinha. Fui atrás de um trabalho.
Devo ter sido a primeira aluna da minha turma de Jornalismo a ter conseguido um estágio. Enquanto meus colegas estavam aproveitando a liberdade recém-conquista que sair do ensino médio traz, em ininterruptas discussões sem sentido sobre algum assunto desimportante enquanto se bebe mais uma cerveja sob o sol das 15h, eu buscava por um emprego.
Honestamente eu gostaria de ter tido algumas daquelas tardes também.
Descobri bem rápido que meu Emprego dos Sonhos na Folha de S. Paulo teria que esperar. Ou talvez ele nunca fosse possível pra mim, já que o programa de estágio era do tipo *não remunerado* o que traça uma linha bem clara sobre quem pode e quem não pode ter esse tipo de experiência.
Eu não podia.
Muitas pessoas que eu conheço também não.
O plano era claro: um estágio em algum veículo especializado em cultura ou política. Apesar de ter acabado de entrar na faculdade, eu acreditava que minha determinação, minha eloquência, as minhas excelentes notas na escola e o fato de eu já ter experiência prévia (ainda que em áreas completamente diferentes) seria um ótimo cartão de visitas.
Quem não ia me dar um emprego?
Bom, ninguém em quem eu estivesse realmente interessada.
Todos os lugares que eu procurei, escrevi, mandei e-mail, tentei uma aproximação, ninguém tinha uma vaga pra uma garota do interior em seu segundo mês de faculdade. Nem mesmo o Jornal da Usp, a Rádio Usp ou qualquer veículo interno de comunicação da maior universidade do país tinha um lugarzinho pra mim.
Comecei a me preocupar muito.
O parco dinheiro que eu tinha economizado estava chegando ao fim, e eu não tinha um plano reserva.
O que eu faria se tudo desse errado?
E então, eu recebi uma mensagem no meu Orkut.
Um cara – que eu nunca tinha visto antes – procurava por estudantes de jornalismo para trabalhar no seu negócio. Era digital, envolvia escrever, e eu fui encontrá-lo num escritório na Teodoro Sampaio, em Pinheiros.
Saí de lá com meu primeiro estágio.
Eu ia escrever artigos para um e-commerce de meias.
Nada de cinema, política ou nenhuma das coisas que eu era boa ou gostava de ler sobre.
Para aquele emprego eu precisava desbravar um novo universo, um que eu nunca havia verdadeiramente prestado atenção. Não com seriedade, pelo menos.
Eu precisaria escrever sobre moda.
Ali, tudo mudou.
Esse texto faz parte desse percurso que resolvi traçar da minha relação com moda, com estilo, e como a minha vida se costura nisso tudo – ou como isso tudo se costura com a minha vida.
Você pode ler mais aqui:
Estamos lendo juntas “O perigo de se manter lúcida", da Rosa Montero, e dia 25/11 teremos um encontro online pra falar sobre – e a ideia é nos encontrarmos ao vivo em dezembro pra falar sobre a vida 🌹 Se quiser participar, as informações estão aqui:
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Rosa Montero é uma autora única – gosto de como ela mistura ficção com dados da realidade, como ela monta uma narrativa ao mesmo tempo que te apresenta estudos e notícias e números científicos.
Beijos
Com carinho,
Stephanie Noelle
É quase mágico quando a gente vê histórias tão parecidas com as nossas, sensações tão irmãs, vindo de outra perspectiva-realidade. Meu sonho de criança era ser historiadora e arqueóloga, pq eu ficava angustiada com a possibilidade de alguma coisa na história ter se perdido - meus jogos na mega sena ainda são na esperança de que eu vou conseguir me dedicar para essas disciplinas. E caí na publicidade mais ou menos no acaso, mas sempre na intenção de ir atrás de deixar coisas pra trás e conseguir viver uma realidade que era um sonho distante e fazer uma história diferente ⚡️
Uau! Ansiosa pela continuação