Com carinho

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São as pequenas coisas

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E o cuidar de si

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Stephanie N. B.
mar 03, 2024
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São as pequenas coisas
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Em 2019 eu trabalhava numa agência de publicidade muito conceituada, fazia projetos legais e me dedicava muito além do que era esperado (e saudável) de mim. Eu dormia pouco, comia e bebia muito mais do que o suficiente, não fazia exercícios e desmarcava muitos compromissos em cima da hora porque algo havia surgido e eu ia precisar ficar até mais tarde no trabalho. 

No meio dessa rotina completamente desregulada, algo me fazia minimamente feliz: me vestir todo dia de manhã. Eu podia estar morta de sono, cansaço, raiva de um cliente qualquer que resolveu pedir ajustes na noite anterior ignorando totalmente que as pessoas tinham vida fora dali, mas eu dedicava alguns minutos pra me olhar no espelho e perguntar: o que eu quero vestir hoje? Como eu quero me sentir?

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E então eu me permitia escolher qualquer coisa, independente de ser 'demais' ou 'de menos'. Paetê de dia? Sim, por favor. Mangas bufantes? Por que não? Vestido de festa com moletom por cima? Me vê dois.  

Era meu luxo particular, meu jeito de colocar algum prazer naquela estafa mental, de criar um universo particular ao meu redor, que começava comigo escolhendo meticulosamente o que eu ia vestir. 

E todos os dias alguém me perguntava: "onde a senhorita pensa que vai?", "tá toda arrumada assim pra quê?", "onde é a festa?" e vertentes do mesmo tipo. 

Eu só queria me sentir bem, sem esperar "um dia", "uma chance", "uma ocasião especial". Eu era a ocasião especial, a minha vida era minha ocasião especial. Nenhum dia iria se repetir, nenhuma história. 

Olhando em retrospecto consigo ver o quanto esse pequeno gesto, que podia parecer bobo, frívolo, desimportante, foi fundamental para que eu não me perdesse de mim no meio daquela enxurrada de trabalho. Mais do que isso: fundamental para que eu fortalecesse a pessoa que eu era, independente do que pudessem pensar ou falar - e muita gente falava. 

O mundo podia estar caindo ao meu redor, mas eu tinha um pedacinho de mim que se mantinha seguro, bem cuidado, alimentado. 

Ao dar a chance de fazer essa escolha todos os dias, eu abria um espacinho também pra minha criatividade brincar, sem se preocupar com deadlines, entregas e google slides. 

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Na época eu dei um nome pra isso, "linda pra mim", numa espécie de convite para que outras pessoas também se sentissem inspiradas a se fazerem lindas pra si mesmas - e esse linda podia significar muitas coisas diferentes pra cada pessoa. 

Eu também queria deixar claro que eu me arrumava primeiro pra mim mesma. E que isso bastava. Eu não precisava dum motivo grandioso pra passar batom vermelho e combinar com blazer e calça da mesma cor. Bastava eu estar com vontade. 

Não sei se dá pra chamar de "movimento", mas fiquei muito muito muito feliz de ver quanta gente se identificou, se inspirou, levou um pouco daquela ideia pra sua própria vida. Quantas mensagens eu recebi que tenho print e guardo até hoje, quanta gente maravilhosa me encontrou na rua e me falou 'olha, tô linda pra mim!!!'. 

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De lá pra cá essa prática se expandiu pra muitas outras áreas da minha vida, especialmente com a pandemia, e com a necessidade latente de encontrar algum conforto naquele desconforto todo. 

Criei o hábito de me arrumar mesmo em casa, quase todos os dias. Criei o hábito de comer à mesa com louças bonitas (e não no sofá), acender velas, comprar flores pra mim mesma quando sobrava um dinheiro a mais na feira, abaixar as luzes no fim do dia e escolher uma playlist chique pra embalar o momento de fazer o jantar. Comecei a colecionar camisolas vintage, e depois de um banho especialmente cheiroso, escolhia uma delas pra me acompanhar até a hora de ir pra cama. 

Nem sempre funcionava. Muitas vezes não foi o suficiente pra lidar com o horror do mundo fora de casa, ou com as minhas inseguranças pessoais. 

Óbvio. 

Não é uma cura, não é terapia. 

Mas tem seu valor, e cumpre um papel que muitas vezes ignoramos, deixamos de lado, e dizemos que não temos tempo/dinheiro/qualquer coisa pra se mimar, pra cuidar de si, pra se fazer um agrado. 

Se a gente parar pra fazer a conta, quantas vezes priorizamos fazer algo de especial pra alguém, no menor dos gestos ao maior dos atos, e nunca nos autorizamos a fazer algo minimamente semelhante pra nós? 

Quantas roupas lindas temos no armário, guardadas esperando uma chance de vir ao mundo, ou que foram adquiridas pra celebrar a vida, a união, o momento especial de alguém, e deixamos pra lá quando a ocasião é celebrar a nós mesmas? 

Quantas xícaras, pratos, receitas, velas, sabonetes, sapatos, lençol, vaso, leiteira - qualquer coisa!!!! - estão guardadas, juntando poeira e ficando velhas, enquanto nossa vida acontece sem nem um brilhinho de cuidado extra além do básico que fazemos pela nossa sobrevivência? 

Nos ensinaram que esse tipo de coisa era boba. Ou que agir assim era se dar mais valor do que se tem. Que o certo é fazer pelos outros, que importante mesmo são eles.  

Eu lembro de muitas vezes que ouvi da minha família que eu tava chamando muita atenção, ou que eu tava "arrumada demais", invocando alguma ideia de modéstia que eu precisava aprender a ter. Não fazer alarde de mim mesma, porque isso não era coisa de mulher direita. 

Minha mãe, coincidência ou não, sempre de vermelho na minha infância

Minha mãe, por outro lado, nunca foi assim. Apesar da gente nunca ter tido dinheiro, ela cultivou em mim a ideia de que se fazer um agrado era importante – a vida já era dura demais do jeito que era.

Nós saíamos pouco de casa, mas se tinha qualquer coisinha pra gente ir, ela sempre estava linda, reluzente, dava pra perceber que ela havia colocado atenção em si mesma. E eu adorava assistir ela se arrumar, escolher a roupa, passar perfume, colocar os anéis que ela guardava numa caixinha forrada de veludo vermelho. Eu a olhava no meio dos outros e pensava que ela era a mulher mais linda do mundo, e secretamente sonhava em um dia fazer o mesmo por mim. 

Minha avó chiava, meu pai chiava, minhas tias chiavam: "Nossa Beth, pra que tudo isso?", e ela dava de ombros.  

Sorria, jogava o cabelão escuro pra trás, e cochichava pra mim: 'eles não sabem de nada, né?'. 

Ela plantou muito bem essa ideia em mim. 

Cultivei com carinho, nutri com minha vivência e vi florescer cada dia mais uma mulher que tenho orgulho de ser, que se abastece principalmente das pequenas coisas, do cuidado diário, do amor que é pra mim – e que daí se extende também pros outros. 

Entendi que podia expandir essa conceito, e ter a mesma atitude com (quase) tudo na minha vida. E que incorporar esse pensamento para além do material (vestir uma roupa, escolher um prato, acender uma vela) traria mudanças significativas. Mais do que isso: transformadoras. 

Comecei a reservar a manhã dos dias só pra mim, antes do mundo acordar e das demandas me encontrarem. Com tempo, sem pressa, tomo meu café, escrevo, leio um livro num silêncio que só existe nesse momento do dia. Me dou a chance de fazer tudo vagarosamente, sem nenhum compromisso com a produtividade. Essas horas são minha preciosidade, e meu presente diário é ver o sol banhar o céu com suas cores e formas que nunca, jamais se repetem. 

Desse mesmo jeitinho fui encaixando uma caminhada aqui, uma corrida acolá, e quando vi tava achando o máximo ir pra academia todos os dias. E isso só aconteceu porque eu percebi que me movimentar era dos maiores investimentos que eu poderia fazer por mim - e mais ninguém no mundo teria esse poder. 

Antes eu pensava em exercício com ódio e com culpa - e associava imediatamente com a frustração e insegurança que eu tinha quando olhava meu corpo no espelho - impulsionada pelo mundo e pelos muitos anos de revista feminina no meu currículo. 

Como que pode, né? Algo que faz bem pra nossa saúde, cabeça, longevidade, mobilidade, respiração e mais uma porrada de coisas, ser classificado como "o sacrifício que você tem que fazer pra perder peso porque seu corpo não é aceito assim"'. 

se aproxime de coisas que tragam paz pro seu coração, que façam sua vida brilhar ainda mais.

Se cuidar é uma intenção, não uma penitência. 

Fizeram uma lavagem cerebral na gente e nos fizeram acreditar que passar horas com os olhos grudados na tv, no celular, no computador, derretendo enquanto comemos uma comida de baixo valor nutricional que chegou na nossa porta com o simples apertar de um botão é se fazer um agrado. Se você incluir uma máscara facial no combo, é inclusive chamado de autocuidado. 

No fundo a gente sabe que não é. 

Se a gente escutar com atenção, vamos ouvir de nós mesmos que não é nada disso que nossa alma, nosso corpo, nossa mente precisa. 

São outros estímulos, outras atenções, outros movimentos. 

E cada um precisa encontrar os seus. 

Investigar, experimentar, saborear. 

Abrir espaço, se priorizar. 

Isso é cuidado.  

Com carinho,

Stephanie Noelle


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