Talvez o que tenha me feito insistir no caminho do artista, logo da primeira vez que eu o li, depois de toda a introdução, que pode ser um pouco cansativa - e se você já está com um pé atrás, pode te desestimular de vez - foi essa frase:
"E é lá, entre o sonho de agir e o medo do fracasso, que nascem os artistas-sombra".
Oh yeah baby, essa foi direto na minha jugular.
Esse primeiro capítulo, "recuperando seu senso de segurança", pega em mim tipo como quando estamos de boa em casa e resolvemos dar uma arrumadinha de leve, e então você percebe aquela nuvem de pó que se move quando você mexe um móvel de lugar que estava esquecido ali há muito tempo. Então você olha ao redor e percebe que tudo está muito mais empoeirado do que você imaginava, tem um monte de sujeira no chão e coisa fora do lugar e que o trabalho vai ser mais profundo e demorar mais tempo do que você previa. Com o adendo daquela nuvem de pó em volta que te faz espirrar que nem doida.
Você não tava necessariamente pronta praquela sujeirada, você só queria passar um paninho, coisa rápida. Mas agora não tem como voltar atrás, você não consegue mais simplesmente ignorar que tá tudo bagunçado. Você precisa arrumar.
E é assim que esse livro começa – pelo menos pra mim. Grifei tantas passagens, me reconheci em tantas camadas, que parece difícil que ao longo das próximas 11 semanas a coisa vai pegar mais fundo (spoiler: vai). E não sei como tem sido pra vocês, mas por aqui não tem tocado o sininho da identificação apenas na questão criativa, mas na vida como um todo.
Quantas vezes a gente deixa de fazer ________ (insira aqui basicamente qualquer coisa que a gente tem vontade de fazer) por medo de fracassar, mas fica embalando aquele sonho dentro da gente, ora com carinho, ora com raiva? Parece que a coisa chega até a fermentar, de tão guardada que tá.
Na minha casa a ideia de ser artista nunca foi presente. Meus pais são da classe trabalhadora, assalariados, com pouco acesso a cultura pra além da televisão e do rádio, e o sonho deles pra mim sempre foi que eu conseguisse uma vida melhor do que a deles. E eu entendia isso como "preciso ter uma carreira estável, preciso ter um bom salário, preciso conseguir me manter assim que eu sair da casa deles, não posso depender deles ou de ninguém, eu não posso errar". Cresci assim, vendo eles passando por uma dificuldade atrás da outra, frustrados com o baixíssimo salário, preocupados mês após mês com a comida na mesa, o aluguel, as dívidas e nada sobrando pra uma pizzinha que fosse no final de semana. Eles não tinham faculdade, minha mãe não havia terminado o ensino médio até meus 14 anos, e pra mim a resposta estava em fazer faculdade, ser muito determinada, me esforçar ao máximo e não errar. Não havia margem.
Mas algo dentro de mim sempre pulsou de um jeito diferente. Os livros eram meu refúgio, e eu me lembro vivamente das tardes que passava na biblioteca da cidade debruçada sobre um livro diferente. Eu venerava aqueles exemplares, e sonhava com o dia que haveria um com o meu nome estampado na capa ali naquelas estantes. Aos oito anos uma tia me deu meu primeiro livro de ficção, que não era a Bíblia ou um livro infantil, desses curtinhos. Era da coleção Vaga-Lume, se chamava "A Charada do Sol e da Chuva" e eu o tenho até hoje.
Eu amava dançar. Fiz todas as modalidades disponíveis no centro cultural da nossa cidade, de jazz a dança do ventre, passando por balé, hip hop e country, e aos 11 anos me inscrevi num curso de teatro lá mesmo. Nos quatro anos seguintes aquele era meu porto seguro. Se minha casa estava insuportável, era entre o palco e a coxia que eu encontrava conforto. Se eu estava deprimida por não ter amigos na escola, eu interpretava qualquer outra história e por algumas horas eu fugia da minha. Estar no palco era delicioso, me dedicar a estudar um texto, uma personagem, encontrar seus gestos, sua voz, seu olhar…
E por mais que eu percebesse o quanto eu era feliz naquele lugar, respirando arte, eu sabia que aquilo não era pra mim. Eu não podia arriscar uma carreira tão incerta quanto escritora, atriz, dançarina. Eu não tinha rede de segurança caso eu levasse um tombo feio enquanto tentasse. Infelizmente eu cresci com isso muito claro dentro de mim, e nunca me dei a chance. Se eu não tivesse certeza que daria certo (tadinha de mim), não valia a pena. Era perigoso demais, ousado demais, e eu tinha medo de sonhar muito alto e queimar minhas asas no sol.
"Gente como a gente não vive a vida que sonha. Gente como a gente vive a vida que dá."
Essa frase, que ouvi do meu pai algumas vezes, funcionava como uma cerca invisível.
Se eu percebia que estava vivendo perto demais de um sonho - ou até dentro dele - eu dava meia volta e ia embora.
Eu tinha medo.