Associar faxina com clareza mental não é a maneira mais original de se investigar o tema.
Diria que é até um clichê, mas quem liga?
O fato é que saiu até na minha leitura recente de tarot que eu preciso dedicar um tempo considerável da minha vida pra fazer uma faxina daquele jeitão.
E não no sentido figurado. No sentido literal, mesmo.
Eu me mudei pra esse apartamento no último mês de 2019 e tudo era muito diferente naquela época. Eu não tinha 30 anos, meu trabalho era numa agência de publicidade e meu cabelo, curto. E castanho.
Não tinha sofá quando eu me mudei pra cá, mas o primeiro que compramos (juntos, eu e ele) segue até hoje. O tapete também, a poltrona, o aparador, a mesa de canto vermelha e a mesa de canto bege, os dois espelhos redondos, as almofadas, o banco em que ficam alguns dos meus muitos livros.
Na varanda as mesmas plantas que foram compradas numa madrugada alegre no ceagesp e tinham suas folhas verdinhas adornando um espaço em que dividíamos as manhãs agora jazem secas e sem vida. Não é necessário fazer a alegoria, todas nós pensamos a mesma coisa.
Essa casa foi sendo criada como uma casa pra nós, e agora ela é minha casa – o que é muita coisa.
Já há algum tempo, porque em meados de 2021 eu e ele decidimos cada um ter sua casa e essa deve ter sido a melhor decisão que eu tomei ao longo desses sete anos. Mas de alguma forma ainda era uma casa que construímos (no sentido figurado, óbvio) juntos. Eu falava isso, ele falava isso.
Nos cinco anos que vivo aqui foi como se o mesmo tema fosse sendo elaborado e ganhado camadas - várias coisas mudaram, mas nada fundamentalmente mudou.
É uma bela casa.
Na superfíce.
A perfumaria.
Isso porque mantenho fora de vista tudo que está uma bagunça.
As muitas tralhas acumuladas.
Os cantos em que enfiei alguma coisa e nunca mais olhei.
Os resquícios dos dias, das histórias e dos momentos.
A porta do meu quarto com a tinta toda descascada daquele dia que a gente brigou tão, tão feio. Isso faz anos.
O cabideiro que ganha contornos de espírito obsessor com as luzes apagadas.
As gavetas cujos papeis eu enfiei sem olhar, cujos fios todos emaranhados lembram o nó do meu estômago quando algum pensamento se abate sobre mim e eu sou obrigada a encarar algo que já tinha colocado no passado.
Na cozinha eu tenho um móvel que eu odeio.
É um conjunto de duas peças, aquele tipo de armário que com certeza fora comprado numa loja dessas de eletrodomésticos, móveis de compensado e televisões.
Um dia, na pandemia, ele começou a ceder.
Nele ficam os meus pratos, copos, taças - e funciona também como dispensa.
E ele começou a ceder.
Não aguentava mais o peso das coisas e eu fiquei desesperada. Como era pandemia não havia muito o que fazer. Pelo menos eu disse isso pra mim mesma. “Vamos dar um jeito, por enquanto".
Coloquei uma pilha de livros didáticos para sustentá-lo até tudo aquilo passar e comprarmos outro no lugar.
Os livros didáticos seguem ali, junto ao armário feio. O “por enquanto” virou “definitivo” e eu sigo odiando aquele armário e essa solução mambembe e o fato de que eu demorei pra comprar outro armário porque a gente nunca chegava numa decisão conjunta. Ele queria mudar tudo, a cor das paredes, a pia, a iluminação, o lugar que ficava o fogão, porque tudo desagradava. Eu queria trocar o armário primeiro “e depois a gente faz o resto.”
Não houve uma coisa, nem outra, e o “pé de livros” do armário segue como um lembrete das muitas coisas que nunca foram resolvidas em definitivo porque tínhamos visões diferentes de como lidar com problemas.
Eu poderia falar do meu quarto e das muitas pilhas de livros encostadas na parede e que parecem uma escolha estética intencional, mas na verdade eu só tirei as pilhas da sala porque os livros pegavam muito sol e estavam desbotando (!!!) e coloquei no meu quarto porque era onde eles cabiam. Não é que eu não goste deles ali, mas também é uma solução temporária. Não é o que eu queria, é o que foi possível naquele momento e eu deixei estar.
E talvez esse seja um pouco do problema que eu preciso encarar.
Quando algo foi resolvido temporariamente, pra não piorar, pra não virar algo terrível, mas não foi resolvido definitivamente.
Eu tirei as bagunças da sala, mas elas ainda estão aqui, na minha casa. Elas ocupam espaço, elas me irritam, me atrapalham, dificultam que eu encontre coisas que eu realmente preciso e não deixam nada de novo entrar a não ser que eu queira tornar tudo ainda mais abarrotado.
Eu SEI que eu preciso olhar sem distrações pra coisas que estão ali, no cantinho, me incomodando.
Eu SEI que eu preciso dedicar um tempo da minha vida pra tirar tudo do lugar e decidir o que vai pro lixo e o que faz sentido ficar.
E talvez seja um pouco isso: eu sempre penso que vai ser um trabalho hercúleo, uma dedicação que não sou capaz de entregar agora, que vai custar tempo-energia-paciência. E será que vai mesmo? Será que não parece muito mais complicado e trabalhoso do que realmente é?
Não fugir da tarefa pode me trazer uma paz de espírito que eu estou buscando de outras maneiras, em outros lugares, mas que pode estar literalmente dentro da minha própria casa.
Tem uma camada a mais aqui.
As minhas roupas.
Eu gosto muito de roupas – é uma das maneiras pelas quais eu me expresso. Não sou mais a consumista que um dia eu já fui, mas eu tenho muita coisa. Muita (!) coisa.
E eu não amo tudo.
Pelo contrário. Muitas dessas peças estão ali por pura inércia. Ou por eu achar que posso vir a querer usar em algum momento. Por sentir que abrir mão daquela peça é também abrir mão de uma história que eu poderia viver. Ou uma versão minha que eu ainda não conheço. Ou pior, uma versão minha que já não tem mais espaço na minha vida, mas que insiste em ficar ali, ocupando espaço.
Um tempo atrás eu fiz o trabalho de tirar TUDO e escolher o que ficava e o que ia embora. A ideia era (é) fazer um brechó online e passar tudo isso pra frente.
Faz mais de um ano isso.
Eu tirei as coisas do meu closet e elas foram parar em caixas, malas, sacolas, escondidas em cantos que não me atrapalham no dia a dia, mas que estão ali, com aquela energia de situação mal resolvida.
Essa semana fui procurar minha mala e não encontrava em lugar algum. Até que me lembrei que ela estava servindo de depósito pra algumas dessas roupas que eu já não quero mais.
Estava em cima do armário e ainda bem que estou forte, porque tirei ela sozinha de lá, estufada de peças que já deveriam ter ido viver outras coisas há muito tempo.
Tirei tudo de lá e agora essas roupas estão empilhadas na minha sala, gritando pra mim: quando é que você vai resolver essa situação, hein mocinha???
Não é agora.
E pela primeira vez vou estar numa cidade que não é a minha, com pessoas falando num idioma que eu não domino, totalmente sozinha.
Um respiro de tudo isso.
Uma suspensão no tempo, um jeito de ganhar distância, perspectiva, energia, clareza. E olhando pra outras coisas, usando o cérebro de outro jeito, tomando decisões diferentes das que eu tomo todo dia, eu também vou encontrar outras soluções.
Não uma solução mágica.
Mas uma solução que resolva de uma vez. A partir de um trabalho cuidadoso, um olhar dedicado, um tempo praquilo.
Quando eu voltar a pilha de roupas ainda vai estar no mesmo lugar. E as mesmas tralhas estarão acumuladas nos mesmos cantos empoeirados.
Mas eu com certeza vou estar diferente.
E isso muda bastante coisa.
Estou no terceiro dia da minha primeira viagem sozinha, de férias. Cheguei em Barcelona nesse domingo, e fico alguns dias por aqui – e depois sigo pra outro país. Ainda não caiu a ficha, de tão corrido que foram meus últimos dias. Fechei minha mala pouco antes de ir, e 40 minutos antes de sair pro aeroporto minha conta no banco foi bloqueada. Emoções!!!!
Por falar em emoções, tenho sentido muita coisa nos últimos tempos. Alegria, prazer, apaixonamento, excitação, ternura, raiva, tristeza, desprezo, dor. Tudo-ao-mesmo-tempo-agora, porque tudo meio que acontece ao mesmo tempo, de fato. Não tem fila de espera pras coisas acontecerem, elas só acontecem.
Essa viagem, coincidentemente ou não, bem no meio do ano mais importante da minha vida, está me deixando muito curiosa. Não faço ideia de como vai ser. Mas estou de coração escancarado pra viver.
Aqui na newsletter a ideia é fazer um diário de viagem, no mínimo semanal, quem sabe mais. Dividir por aqui o que não cabe em 15 segundos nos stories - e guardar pra sempre esse momento muito especial pra mim.
Como falei na edição passada, os textos semanais passam a ser abertos apenas para os assinantes da news - são 13 reais por mês - e teremos um texto aberto por mês pra quem prefere ou não pode assinar.
As imagens acima são da artista Sophie Calle - a primeira imagem é da obra "Douleur Exquise", em que narra o fim de um relacionamento. As demais são do livro “L'hôtel", em que ela documentou o período em que trabalhou como camareira e fez fotos dos rastros deixados pelos hóspedes.
E como fechamos o mês, trago aqui também minhas coisas favoritas de Maio!
📺 “Dying for Sex” (Disney+)
Essa é uma das melhores séries dos últimos tempos,. A premissa é curiosa e um tanto melancólica: a personagem principal está com um câncer em estágio bastante avançado e decide que quer ter um orgasmo. Tanto a Michelle Williams, a protagonista, quanto a Jenny Slate, que faz a melhor amiga, estão absurdas e a série é de uma sensibilidade sem tamanho. É divertida, emocionante, vulnerável e toca em pontos sobre a sexualidade da mulher que quase nunca tem espaço nessas produções. Senti um cuidado muito forte em como realmente explorar esse momento tão delicado da vida dela e também dessa investigação do sexo como algo absolutamente válido, importante e necessário. É revolucionário.
🎧 Marina Sena, “Coisas Naturais”
Esse álbum tá uma delícia de ouvir, de dançar, de mandar pro (a) paquera. Não amei o anterior dela, e aí esse me pegou bastante, mais maduro, divertido, interessante. Minhas favoritas são “Lua Cheia”, “SENSEI", “Desmitificar”, “Ouro de Tolo” e “Anjo".
🎬 “Triangle of Sadness”
Não é novo, não vi no cinema, vi em trânsito, viajando. Uma sátira exacerbada da cultura das aparências, do materialismo e de como nossa sociedade privilegia (com acessos, dinheiro, interesse) pessoas e trabalhos absolutamente irrelevantes.
🖼️ “Frutas Milagrosas”, Hulda Guzman e a “A ecologia de Monet”, no MASP
Se você for de São Paulo ou estiver por aqui nos próximos meses, não deixe de visitar essas duas exposições belíssimas. Eu não conhecia o trabalho da Hulda, uma artista jovem (41 anos!) da República Dominicana que tem um trabalho intenso, sensual, vibrante e onírico.



E acabou de abrir a primeira mostra do Monet no MASP desde 1997 (!!!). Tá linda, linda, coisa emocionante pra quem gosta dum artista véio desses que a gente aprendeu na escola e via nos livros. Eu sempre me emociono!



🔗A nossa campanha da On com Humberto Carrão
Preciso vir falar disso com calma, porque foi / tá sendo uma das coisas mais legais que já me envolvi profissionalmente. Mas é isso, minha empresa, a Tég Bureau, é a agência de conteúdo da On no Brasil e nós fizemos a campanha pra anunciar o Humberto Carrão como novo embaixador - o roteiro é meu, e assino a direção criativa com meu sócio. Tudo muito doido, especial, foda.
📖 “Olhe as luzes, meu amor", da Annie Ernaux
Sou fã da Annier Ernaux e da maneira com que ela transforma o cotidiano em algo digno de registro - algo que eu, particularmente, sou muito afeiçoada. E nesse livro ela usa um hipermercado dos arredores de Paris para fazer uma crônica social de comportamento. Eu achei sensacional, tocante e um convite para prestarmos mais atenção ao que nos rodeia no dia a dia.
🦪 Restaurante Jacó
No dia anterior a minha viagem meus amigos marcaram um jantar pra se despedir de mim (hehe <3) nesse restaurante que eu não conhecia ainda: o Jacó. Só o lugar já é muito legal, moderno e de um bom gosto absurdo, mas as comidas… UAU. Nada, absolutamente nada era mais ou menos. Todas as comidas - que são para compartilhar e assim comer tudo ou quase tudo do menu - são sensacionais. Aquela mordida que faz cê fechar o olho pra aproveitar ainda mais, sabe? Indico demais!
Um beijo
com carinho.
e até semana que vem!
Stephanie Noelle
Boa viagem Ste, seja a sua aí de férias, ou a que você terá na volta quando se deparar com todas suas versões enquanto arruma suas coisas. Me lembrei de duas coisas enquanto lia, a primeira foi quando deixei de morar com um namorado, que já dividia o quarto há alguns anos. Eu reformei todo o quarto, no que era possível, pintura, decoração e lugares dos móveis. Lembro que ele achou estranho, e eu só queria era me sentir eu mesma de novo e ter meu casulo minha cara (canceriana, que sou, o quarto é mt importante). A segunda, é que nessa época eu li "A mágica da arrumação", da Marie Kondo, que depois virou uma febre, ganhou série na netflix. Entretanto, eu achei uma leitura inspiradora. Não dá pra levar tudo em consideração nesses livro meio autoajuda, porque né, a gente é muito coisa, coisa muito complexa e cheia de camadas pra uma formula unica resolver tudo. Mas, pra mim tem algo muito legal nesse livro que é uma autora japonesa falando sobre orgnaização. E EU AMO como a cultura oriental se relaciona com objetos. Então, eu li, é bem pequeno, então é rápido, e logo depois eu já fui arrumar tudo. Mas, lendo vc percebe que esse tudo, acontece aos poucos, em pequenos detalhes, no seu tempo. Fica a dica.
que boa a tua volta… se um dos próximos pousos for Amsterdam e quiseres um café diz ♥️